Chega.
Paulo José Cunha
Chega.
Assim, sem exclamação, sem exageros, sem gritos histéricos. Apenas, chega. Ponto. Pois já se exauriu o tempo das explicações inúteis para o que foi visto e repetido nas telas das tevês, que nos causou repulsa, engulho, nojo, revolta, vergonha e lágrimas. A exibição das imagens sórdidas de bolsas e meias entupidas de dinheiro sujo causou uma dor fina, dor doída e persistente, que não vai parar tão cedo de doer em todos os que amamos esta cidade. Brasília anda triste, de olhos baixos. Com a tristeza dos traídos.
Sim, porque abriu-se uma ferida funda, bem ali no meio da Esplanada; lá onde mora o coração da cidade, entre as pessoas que tomam ônibus na Rodoviária; ao lado da Praça do Relógio em Taguatinga; entre os violeiros da Casa do Cantador da Ceilândia; no meio da pista que vai pra Sobradinho; no centro da Feira do Guará. Uma ferida fétida, aberta para onde se olha. Uma ferida dói por toda parte. Aberta, exposta, dolorida e que permanecerá aberta, exposta e dolorida até que alguém entenda o sentido de uma palavra seca e única: chega.
Sem alarde, sem discurso pomposo, dizemos apenas e tão simplesmente que chega. Nossos meninos, bravos meninos (os novos caras-pintadas, aos quais se uniram agora os igualmente bravos coroas-pintados) continuam enfrentando as patas dos cavalos da polícia de S. Excia. Mas S. Excia. e seus acólitos ainda não entenderam que chega. A guerra acabou, o senhor perdeu, o povo ganhou. Chega.
Alcançamos, aos 50 anos, a idade da razão, com um passado que nos orgulha. Passado todo feito de coragem. Coragem de momentos como aquele, quando a brava gente brasiliense foi às ruas despedir-se de seu criador e carregou em lágrimas ao cemitério o corpo de JK nas próprias mãos, desafiando as ordens da ditadura ("como poderei viver sem a tua companhia?"); coragem dos meninos da UnB que enfrentaram os tanques e os fuzis da intolerância e escreveram com sua dor uma das mais belas páginas da rebeldia sincera de nossa juventude; coragem dos que não pararam de buzinar, em desobediência às ordens tresloucadas de um general grotesco, antiquixote patético, a cavalo, aos berros, chicoteando carros na tentativa inútil de conter o turbilhão da liberdade; coragem dos jovens bonitos que um dia se vestiram de preto e, pintados para a guerra, mudaram o curso da história.
História. Uma palavra cara a todos nós, brasilienses, pois nos últimos 50 anos ela tem passado obrigatoriamente por aqui, e boa parte dela tem sido escrita por nós, e um pouco com o nosso sangue. Nós, agora feridos em nosso orgulho mais puro.
Por isso, chega. Como diz o libertário e rebelde poeta Torquato Neto, "a guerra acabou, quem perdeu agradeça a quem ganhou". Chega. Se não entenderam ainda, nós, os que amamos esta cidade que nos acolheu e onde nossos filhos crescem e se tornam cidadãos de bem, repetimos e repetiremos enquanto houver ar nos pulmões: chega.
Brasília está vocacionada para o futuro, é a cidade da coragem. Coragem de um louco que a sonhou para concretizar a interiorização do desenvolvimento, disse que ia erguer a capital do futuro e a fez brotar da terra vermelha, feito flor do cerrado. É a cidade da coragem da arquitetura revolucionária de Lúcio e Oscar, que ainda hoje assombra o mundo. Brasília é a cidade da coragem de quem remove os entulhos do passado, muda o rumo dos ventos e inaugura o futuro. Coragem, quase um sobrenome nosso. Brasília, capital da coragem. Coragem que nunca nos abandonou.
Por tudo isso, game over, meus compadres: as fichas acabaram e vocês não entenderam. Não adianta quebrar a máquina de videogame. The end. Fim. C'est fint. O jogo acabou. Nossa coragem, não. Está maior do que nunca.
Por tudo isso, chega. Agora, por gentileza, saiam daí, que o futuro quer passar.
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Paulo José Cunha é jornalista, professor e escritor.--
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