Romance do Vaqueiro Voador no Canal Brasil nesta terça-feira, 20 de abril de 2010
O vôo do Ícaro do sertão
Vladimir Carvalho
reflete sobre forma e
conteúdo de O romance
do vaqueiro voador,
em cartaz na cidade
VLADIMIR CARVALHO
ESPECIAL PARA O CORREIO
Apropósito de O Romance do Vaqueiro
Voador, filme que acaba de estrear no
circuito comercial em Brasília, ocorreume,
logo que o assisti ano passado, o
que à primeira vista pode parecer rematada extravagância:
fosse nosso contemporâneo o pintor
flamengo Pieter Brueghel, o Velho, o tema da
construção de Brasília não escaparia à sua palheta
tão chegada aos escancarados espaços e
às gentes que nele circulam. Aqui ele poderia
trocar de inspiração e em vez de se inspirar em
Hyeronimus Bosch procuraria um outro quase
homônimo, o João Bosco, autor do cordel que
deu margem ao filme de Manfredo Caldas.
Logo em sua abertura magnificente, com os
créditos de apresentação de Fernando Pimenta,
senti-me planar junto com a câmera, flutuando
com ela sobre a Esplanada dos Ministérios
e o cenário em sua volta. E, tomado pela
vertigem do movimento e da música impactante
de Marcus Vinícius, experimentei a sensação
de reencontrar a obra do mestre renascentista
que quase sempre abarcava com a vista
do alto os seus temas como se os sobrevoasse
até os difusos horizontes. Mas, olhados mais
de perto no foco desses plongês, se viam as cenas
que flagrava, cheias de movimento e intenções,
de figuras prestes a se mexerem para o
deleite de uma invisível câmera de filmar. Assim
são as suas telas célebres como o Porto de
Nápoles, A Colheita do feno,A Torre de Babel,A
Luta de carnaval e Quaresma ou a apavorante
O Triunfo da Morte, aterradora "panorâ
á havia esquecido o pintor com relação ao
Vaqueiro voador, quando revendo o filme e relendo
o longo e tocante poema de João Bosco
Bonfim, tornou-me a baixar o fantasma de
Brueghel e dessa feita mais explicitamente. É
que casualmente decifrei nos versos do cordel
o nome Oraci, um dos apelidos do Vaqueiro,
que lido ao contrário é Ícaro, justo o tema do
holandês na fabulosa Paisagem com a queda
de Ícaro, quadro que tem a mesma e característica
visão do alto a contemplar a condição e a
faina humanas, alimentadas de sonho e utopia.
E aí associei essas ilações à estratégia poética
adotada por Manfredo Caldas e seu co-roteirista
Sérgio Moriconi para traduzir no cinema
a narrativa literária. Ele sobrevoa com sua câmera
em plongê os amplos espaços da grande
urbe já construída e movimentada, prenunciando
o assunto que persegue, até descer
vertiginosamente em mergulho e aterrissar
nas tensões da tragédia que vai contar.
Nesse lance, primeiro procede sorrateiro como
se cercasse a caça à maneira do gavião
que a espreita do alto antes do bote final. Essa
é a primeira manifestação de uma "forma" de
que Manfredo se acerca e termina por se
apossar por inteiro no transcurso do filme,
como se aos poucos fabricasse a carnadura
que vai encobrir e visibilizar o esqueleto de
um duro e implacável conteúdo.
Nunca antes Manfredo foi tão obsessivo no
encalço de sua expressão. Diferente do seu
primeiro filme de longa duração, Uma questão
de terra, Vaqueiro voador está longe de ser um
registro puramente documental, radicalmente
fiel à tradição do gênero que procurava no real
a sua razão de ser e quando, mais do que tudo,
era ao chamado conteúdo que se dava mais
atenção. No caso em tela, não. É a busca obstinada
de um modo particular de "dizer", de expressar-
se na língua do cinema que importa. E
aqui ele claramente faz a corte à forma como
se ela existisse por si só, e em si, separada do
seu conteúdo, como se dirigindo a uma musa
difícil de conquistar. Nesse sentido, Vaqueiro
Voador é um salto na carreira de Manfredo,
quase uma ruptura drástica.
Vale a pena sublinhar também o feliz domínio
do tempo da narrativa fazendo-a inflectir
no momento exato em que ficção e documentário
definitivamente se acoplam, ensejando a
esperada modulação. Essa curva de ascensão
leva o filme até a sua culminância catártica,
quando o drama do indivíduo e a tragédia dos
trabalhadores se tornam praticamente simbióticas.
Na barbearia, diante de meridiana verdade
pode-se dizer sem medo de estar sendo tosco,
que o filme faz barba, cabelo e bigode. O serviço
é completo. Sob os cuidados do fígaro suburbano,
os depoimentos sobre a chacina, muito bem
duram pouco mais de 10 minutos, levando o filme
ao pico máximo, alçando vôo derradeiro e
arremetendo com toda força para o desenlace,
após o que alcança a conseqüente ressaca como
que acordando das profundezas do transe. Nunca
antes de Raimundo (ou Oraci?) precipitar-se
como um ícaro sertanejo no vazio de discutível
suicídio. Nessa altura o rotativo vem subindo e a
música faz a "festa" até o final, narradora e participativa
como foi desde o início.
VLADIMIR CARVALHO É DOCUMENTARISTA
Crônica da Cidade
CONCEIÇÃO FREITAS // conceicao.freitas@correioweb.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)
O VAQUEIRO
VOADOR
SUMIU
Uma semana, uma única semana,
foi o tempo em que O romance do vaqueiro
voador ficou em cartaz. Até as
poltronas acolchoadas do cinema devem
ter se sentido incomodadas com
o documentário de Manfredo Caldas,
baseado no texto de João Bosco Bezerra
Bonfim. Afinal, o filme pega a
contramão da história oficial da construção
de Brasília e, miticamente,
fala do destino ingrato que chamou
para o Planalto Central uma imensidão
de migrantes nordestinos, sugou-
lhes a força de trabalho e os deixou
voar de um andaime de um prédio
em construção.
Não tive tempo de ver o filme, até
podia ter tido, soubesse que ficaria
em cartaz somente uma e protocolar
semana. Mas li o texto de João Bosco,
a sinopse do filme e a crítica de Luiz
Carlos Merten, no seu blog no portal
www.estadao.com.br. Diz Merten
que assistiu ao filme sozinho numa
sala de São Paulo: "O romance do vaqueiro
voador é um filme de difícil
classificação. Não é um documentário
tradicional nem uma ficção (…)
Mas o fato de ser difícil de enquadrar
torna mais bela a história que também
não se encaixa na historiografia
oficial, e tanto que foi apagada". O
crítico diz que O romance... é um "ensaio
poético, um poema filmado,
uma colagem de imagens distintas".
O poema que inspirou o filme foi
publicado em 2004, numa edição
também feita de colagens. Num tamanho
extragrande (quase o dobro
de um Aurélio), mas com apenas 44
páginas, o livro junta gravuras de
Abrão Batista com imagens de Vladimir
Carvalho (do filme Brasília segundo
Feldman) e fotografias do Arquivo
Público.
Diz o poema de João Bosco que
em noite de lua quem se aproximar
da Esplanada dos Ministérios há de
ouvir uma voz que ecoa entre os
blocos. "Que segredo esconde/Essa
aparição medonha/Será milagre de
Deus?/Será alguma peçonha?,/Se
quer saber então ouça/Nâo faça cerimônia".
Quem prefere guardar no peito e
na memória a idéia de que a construção
de Brasília foi uma epopéia imaculada
e de heróis invencíveis, sugiro
que pare por aqui. O poema vai dizer
que não foi bem assim.
O que aconteceu com o vaqueiro
voador foi o seguinte, nos dirá o poeta:
"Era janeiro primeiro/Nos idos
anos cinqüenta/Quando voou um
vaqueiro/De altura sem tamanho/
Espatifou-se no chão/Teve da
vida o desengano".
Quem teria sido o infeliz voador?
"Sobrenome ele não tinha/Era Oraci
Vaqueiro/Ou fosse Raimundo Nonato,/
Quem sabe Tonho ou Joaquim?/
Nome é o que menos conta/
Para quem morre assim."
Vaqueiro Voador nem enterro teve,
foi jogado nos alicerces de algum
dos ministérios. Desde então, toda
lua traz a cantiga lamentosa do peão.
E "o que no princípio era medo,/Tornou-
se consolação,/Todos esperavam
a lua/Para ouvir aquela canção/
Que era triste e lamentosa/Mas
falava ao coração".